30 janeiro 2015

Ele disse bom-dia

Frequento, há algum tempo, uma academia de ginástica  do meu bairro. As pessoas que lá trabalham são extremamente competentes e simpáticas. Nesta semana, quando cheguei, bem cedo, os funcionários da portaria diziam: “Ele disse bom-dia". E repetiam quase que atônitos: "Ele disse bom-dia". Entrei na sala de musculação, e os comentários de alguns professores iam na mesma direção: "Que estranho. Ele disse bom-dia". Gosto da prosa, mas não dedico muito tempo a investigar vidas alheias; entretanto, curioso, quis saber. Contaram-me que um homem, que nunca cumprimentava ninguém, entrou na academia dizendo bom-dia. Apenas uma vez. Mas pegou todos de surpresa. Uma funcionária havia dito que, no início, todos diziam bom-dia a ele. Depois, acharam deselegante incomodá-lo, já que ele não respondia. E, naquele dia, ele, enfim, dissera bom-dia.
Parece estranho um simples dizer causar tanto movimento nos movimentos cotidianos. A ausência de polidez é um desperdício na arte do convívio. As pessoas não fazem parte da paisagem. Elas existem. Gostam de ser acolhidas. O que leva alguém a não retribuir um simples "bom-dia"? Superioridade? Timidez? Contenção de sentimentos?
Ao sair da academia, parei para conversar com os atendentes. Todos muito simpáticos, como já disse. Foi justamente quando o homem estava indo embora. Um atendente lhe disse, “Tenha um bom-dia". Ele não respondeu. Não olhou para trás. E saiu decidido a viver sem essas interferências desnecessárias. Um olhou para o outro e tentaram entender o que acontecera. "Será que ele não disse e nós pensamos ouvir? Será que ele ganhou na Mega-Sena e resolveu, então, dar bom-dia? Mas foi apenas um! Não, o ganhador da Mega- Sena desta semana é de Sorocaba. Certamente, essa não foi a razão". Estranhos comportamentos de quem convive com pessoas. Gestos de gentileza, mesmos os mais singelos, têm muito poder. O poder de nos sabermos frutos da mesma espécie. Da que precisa de afeto.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 30/01/2015

25 janeiro 2015

A primavera (2° parte)

O mais velho era advogado renomado. O mais novo ocupava o seu tempo como atendente da Tabacaria Domênica. Sempre que podia, eu arriscava atravessar a Rua Domingos de Freitas para observar as miudezas da vitrine. Era ali que nossos olhos se encorajavam para o pecado do encontro. Não havia dissimulação. A vitrine nos nos congregava. Era como se ele tivesse o poder de nos proteger da culpa.
Não havia palavra. Dizíamos tudo com os olhos. Eu pedia perdão por não ter coragem de enfrentar meu pai. Ele perdoava. Ele pedia que eu compreendesse a sua incapacidade de trair seu irmão. Eu compreendia. Eu jurava amá-lo até o fim dos meus dias. Ele confirmava o juramento.  

Numa manhã de sexta-feira, dia em que a alma parece querer mais que o comum de todos os dias, Alberto surpreendeu-me com um gesto quase cheio de voz. Vendo que eu atravessava a rua para ficar diante da vitrine da tabacaria, correu, estendeu  os braços para dentro da vitrine e retirou um retalho de tecido, deixado á amostra um coração de chocolate que tinha uma tira de cetim carmim com os seguintes dizeres:

"Amo você e vou amar por toda a minha vida!". 

Eu sorrir também. Um sorriso único, dado ao mesmo tempo, cheio de tristeza. Os meses avançavam. Minha mãe cuidava dos preparativos para o casamento. No dia de experimentar o vestido eu emprestei meu corpo. Olhei-me no espelho e quis o esquecimento da vida. S imagem refletida era uma traição á verdade mais oculta. Eu, por fora, vestida de branco,pronta para o altar e suas festividades, mas, por dentro, viúva, mergulhada no descontentamento de ter sepultado o homem que amava, mesmo antes de ele morrer. 

Eu queria a condenação pública, o suplício das penitências, a culpa por assassinato premeditado, o cárcere, a comida amanhecida, o frio da cela, desprezo de todos. 

Quando setembro alvoreceu e demonstrou seu poder de florir a  terra árida, quando o alarido das cigarras anunciava a despudorada busca pelo amor, coloquei a grinalda na cabeça e adentrei a matriz de Santana dos Cristais. O dia era triste, tal qual a terra árida que a primavera teimava em florescer. Meu sorriso era mudo tal qual o corrimão onde padre Isidoro escorava o corpo vencido pelas artroses. Havia uma atitude vergonhosa se concretizando em mim. 


Conto "A primavera"
Livro Mulheres de aço e de flores 
Autor Fábio de Melo 



22 janeiro 2015

A Importância de Lutar Pela Nossa Relação.



Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também.Tá me entendendo? Eu sei que sim. Eu entro nesse barco, é só me pedir. Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou. Faz tempo que quero ingressar nessa viagem, mas pra isso preciso saber se você vai também. Porque sozinha, não vou. Não tem como remar sozinha, eu ficaria girando em torno de mim mesma. Mas olha, eu só entro nesse barco se você prometer remar também! Eu abandono tudo, história, passado, cicatrizes. Mudo o visual, deixo o cabelo crescer, começo a comer direito, vou todo dia pra academia. Mas você tem que prometer que vai remar também, com vontade! Eu começo a ler sobre política, futebol, ficção científica. Aprendo a pescar, se precisar. Mas você tem que remar também. Eu desisto fácil, você sabe. E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos, mas eu entro nesse barco, é só me pedir. Perco o medo de dirigir só pra atravessar o mundo pra te ver todo dia. Mas você tem que me prometer que vai remar junto comigo. Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir.

Mas a gente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto. Eu te ensino a nadar, juro! Mas você tem que me prometer que vai tentar, que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças! Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa, que vale a pena. Que por você vale a pena. Que por nós vale a pena.

Remar.
Re-amar.
Amar.

Caio Fernando Abreu
Fonte :  http://www.chiadomagazine.com/

NO CORAÇÃO DE QUEM ESCREVE É SEMPRE INVERNO

pedro_invernoNem todas as palavras saem como ou quando deveriam. Lembro-me de um dia ter me perguntado se era possível escrever no verão, no auge de um dia quente. Questionei também se o nosso organismo tem algum termostato ou qualquer outro dispositivo interno que acione as nossas palavras em função do clima externo. Saudade, por exemplo, não combina com temperaturas acima de vinte e dois graus. Caso contrário, ela derreteria tal qual sorvete de pistache. E, cá entre nós, quem vai se dar ao trabalho de sentir saudade quando se tem um dia lindo pela frente? Vá à praia! Mergulhe! Esfrie a cabeça! Espere o inverno para senti-la.
Indo além, Realidade é uma palavra que eu só usaria se o termômetro da rua apontar 42º. Não menos. Ela fica no ponto, naquela temperatura quase insuportável, mas que te deixa um pouco de ar para refletir sobre ela. A realidade é foda. Por outro lado, Ausência se adapta tão bem com o mês de dezembro na Sibéria. Aliás, em Paris – fica mais poético. Já o Amor é uma palavra diferente. É endotérmica. Consegue se adequar à temperatura de qualquer ambiente, ao calor de qualquer emoção, à frieza de qualquer solidão. A danada sempre foge às regras. Por isso é sempre tão amada.
Fico pensando em todos os poemas que não foram escritos porque a palavra, ao sentir a pele do poeta esquentar, deu meia volta e se encaixou novamente no freezer do seu peito. E em todos os romances que ficaram mudos porque as palavras simplesmente preferiram curtir um dia de sol em um domingo tropical. Será que Tolstói teria escrito Guerra e paz com as mesmas palavras se ele fosse bombardeado por raios solares ultravioleta com os pés fincados na areia escaldante (outro adjetivo tão verão!) de Ipanema? Talvez nascesse Arrastão e sol. Da mesma forma, será que Guimarães Rosa teria encontrado as palavras que precisava para redigir Grande sertão: veredas se tivesse se entocado em algum iglu do polo norte? Teríamos então o Grande inverno: derretas
Bom saber que algumas palavras se perdem no caminho entre o coração e a traqueia e ficam em nós para sempre. Em silêncio. À espera de um ambiente que as mereça. Na escrita, a temperatura fica no corpo das letras, das palavras. Às vezes, esquenta. Às vezes, esfria. No coração de quem escreve é sempre inverno. O ambiente externo é só uma paisagem para a existência do poeta – que espera a sua vez de dialogar com o mundo. Daí nascem as mais belas canções, os mais belos poemas, os romances mais arrebatadores. Os grandes clássicos foram escritos em grandes invernos. Ué, então não existe clássico na literatura dos países tropicais? Claro que existe, mas os poetas tropicais carregam o inverno dentro do peito. Eles hibernam no verão.
Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio e  Segundo – Eu me chamo Antônio.

Fonte:  http://www.intrinseca.com.br/

Cecília Meireles

O que amamos está sempre longe de nós
O que amamos está sempre longe de nós:
e longe mesmo do que amamos - que não sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.
O que amamos está como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
só para em nossa morte estar durando sempre.
Como as ervas do chão, como as ondas do mar,
os acasos se vão cumprindo e vão cessando.
Mas, sem acaso, o amor límpido e exacto jaz.
Não necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equívoco do tempo, os jogos da cegueira
com setas negras na escuridão.
Cecília Meireles, do livro "Solombra".
Fonte: Internet 

DIÁRIO DE ISABELA FREITAS

Red heart tree
Sempre escutei das pessoas que tenho muita sorte. Mas espera aí: O que é sorte? Sorte é ter um amor pra chamar de seu, um bom emprego, amigos de verdade e uma família constituída? Ou sorte é ganhar na Mega-Sena, encontrar petróleo e conhecer seu ídolo? Não sei. O que quero dizer é que o conceito de “sorte” é tão subjetivo que eu não acredito que ele realmente exista.
Algo que me diferencia das outras pessoas é que eu sempre acreditei. Acreditar, é disso que o mundo está precisando. Quem não acredita se tranca dentro de si, repele pessoas, sentimentos e oportunidades. Portão fechado não é convite para novidades.
Acreditar é tão fácil, simples e mediato… Não entendo por que as pessoas simplesmente não acreditam. Acreditar que hoje vai ser melhor do que ontem e levantar com um sorriso no rosto não requer esforço algum. Dane-se o que dizem sobre expectativas, sou otimista. Não estabeleço metas, objetivos, muito menos planejo o futuro. Mas sei que uma hora ou outra, a vida vai me recompensar por todo o bom humor. E até hoje ela não me decepcionou.
Deus me livre de pessoas pessimistas. Tentar mais uma vez? Eu não, já tentei demais. Relacionamento não deu certo? “Comigo é sempre assim”, eles dizem. Foi mandado embora do emprego? “Sabia”, eles pensam. Tudo dá errado na minha vida deles.
Sério mesmo que eles se sentem bem sendo tão derrotistas? Eu jamais admitiria a derrota em voz alta dessa forma, sei lá, vai que o destino escuta e desiste de me surpreender? A diferença do pessimista para o otimista é exatamente essa. O otimista leva os mesmos tombos e tropeça nos mesmos obstáculos, mas diferente do pessimista, faz piada de si mesmo e segue acreditando que algo melhor virá em seguida. O pessimista empaca e fecha as portas para o que quer que possa vir em seguida, dizem que estão cansados de decepções, mas se esquecem de uma coisa…
Só se decepciona quem arrisca, e todas as conquistas são provenientes dos riscos que corremos todos os dias. Cinquenta-cinquenta. Qual será hoje? Sorria e espere o resultado dessa loteria que é a vida.
*ISABELA FREITAS é autora do primeiro livro jovem nacional da Intrínseca: Não se apega, não. Ela tem 23 anos e sempre foi apaixonada por livros e pela escrita. Em 2011, começou seu blog [isabelafreitas.com.br], que já soma mais de 60 milhões de visualizações. Estudante de Direito, pretende cursar Jornalismo um dia. Mora com os pais em Juiz de Fora (MG), onde nasceu.

Fonte:  http://www.intrinseca.com.br/

19 janeiro 2015

A primavera (1° Parte)

Eles eram dois. O mais velho era também o mais robusto, o mais vistoso, o mais alto, trajava roupas de acabamento fino, pisava o chão com sapatos visivelmente caros e demonstrava intimidade com as palavras. O mais novo era também o mais tímido. O corte do terno não merecia atenção. Nele, um mínimo de palavras. O olhar baixo, quase sem expressão. As mãos no desajeito, mãos sem pertences, sem futuro feliz e as pernas num balanço descompassado, denunciando que não gostariam  de ter chegado.O sapato era sem nem um atrativo estático. Um sapato feito para durar e só.

O mais velho tinha bigodes. O mais novo não. A cara limpa lhe conferia um jeito de rapaz que ainda não sabia o que esperar da vida. O bigode do outro lhe trazia uma seriedade que parecia garantir a prontidão para o casamento. Talvez seja por isso que papai o tenha escolhido para ser meu marido. Numa tarde de domingo, quando os ventos frios prolongavam o sepultamento das cigarras, chegou e anunciou que eu me casaria com o filho mais velho de Estevão Bittencourt. Disse que o rapaz voltaria de São Paulo para arrumar uma mulher que lhe dispensasse os cuidados de esposa.Eu ouvi a notícia calada e calada permaneci por uma semana.

Dois meses depois, quando o calor de agosto ardia nas cores vermelhas das tardes  e intimidava minhas caminhadas pelo coreto da matriz, o dito rapaz chegou e trouxe o irmão mais novo, Alberto.

Quando os dois homens cruzaram a soleira da  porta  principal, senti as carnes se desprenderem dos meus ossos; sensação que parecia antecipar o destino de ser imaterial, de perder-me nas poeiras do mundo. O olhar perdido, sem distinção e ainda cheio de dúvidas, durou um minuto. Eu olhava os dois e não sabia qual deles seria meu marido. Embora o mais velho fosse portador de uma postura avantajada e ocupasse a centralidade da sala, os meus olhos se ocuparam foi do mais moço, o mais franzino, que timidamente encostou o corpo na cristaleira próxima da janela da sala.

O sorriso do mais velho falou no mesmo instante que as palavras de meu pai . Os meus olhos porém, estavam perdidos em Alberto que ao seu modo, também me olhava. Um olhar quase triste, assustado, como se percebesse a fatalidade que parecia ter o seu início ali. Fatalidade em partes, dia a dia, prolongada no tempo.

O mais alto dirigiu-se até mim e gentilmente beijou-me a mão. No gesto de abaixar com cavalheirismo, pude ver os olhos de Alberto que, posicionado na mesma direção de seu irmão, parecia emprestar-lhe o rosto. O corpo que se abaixava dava espaço para eu ver os olhos que me fascinavam. Enquanto eu recebia o beijo de um, o coração desejava o beijo do outro.

Eles eram dois o coração era um só. Inciso, experimentava naquela fração de tempo a totalidade de um amor sem história pregressa. Um amor maturado mas sem passado. Inaugurado  há tão pouco tempo e já fadado á desgraça que marcou os grandes amores que a humanidade já conheceu. - É possível amar alguém assim, com tanta pressa? - pensei. Mas  que não havia pensamento a ser racionalizado. O que havia era o frio na espinha anunciando que a vida era eterna naquele instante.

" O que havia era o coração descompassado, querendo pular do peito, pronto para morrer de tanto amar"

Naquela noite o mais velho oficializou o pedido ao meu pai. E enquanto os cumprimentos de congratulações aconteciam, pude perceber a enfermidade nos lábios de Alberto. Dele nem uma palavra se ouviu. Entrou mudo. Calado saiu. Eu também não disse nada. Os dias se passaram. Acumularam-se os meses. Com regularidade, o irmão mais velho vinha cortejar-me. Cumpria-se a obrigação do namoro, o tempo reservado ao conhecimento que nos autoriza o passo definitivo.

Não houve conhecimento algum. Apenas a dor de saber-me só. Um beijo de chegada e outro de despedida. Um beijo sem alma, sem profundidade. Apenas o roçar dos lábios em exercício de caridade. Nem um toque me despertava os sentidos. Meu corpo preservado não sabia desejar aqueles braços fortes. Eles suplicavam era pelo encosto suave das nãos de Alberto. 

Trecho do conto "A primavera"
Livro: Mulheres de Aço e de flores
Autor: Padre Fábio de Melo

18 janeiro 2015

Não Permita que o Medo Vença

Aquele que é cheio de medo não consegue amar completamente. Não consegue dar ao pobre. Benevolência não traz garantia de retorno. Não consegue sonhar loucamente. E se os sonhos titubeiam e caem do céu? Medo paralisa pessoas. Você está com medo? Tem medo de perder o emprego? Medo do que pessoas estão falando sobre você?
Jesus trava uma guerra contra o medo. Em Mateus 10:28 Ele diz, “Não temam aqueles que podem matar o corpo, mas não podem matar a alma.” Em João 14:27 Jesus diz, “Não se perturbem vossos corações e não tenham medo.”
O alvo principal do medo é afastar você do plano de Deus para sua vida. Não permita que ele vença! Dê uma bofetada na cara do medo! Se alguma coisa deve ter medo, é o próprio medo.

Fonte:  http://www.maxlucado.com.br/

Respeite minha memória

Em um restaurante, uma filha mostrava impaciência com a mãe que repetia as histórias. A filha a interrompia, grosseiramente, dizendo: "Mãe, você já contou isso, você está muito esquecida, você não está bem. Que pena, mas você não está bem!". 
A mãe, olhar ao longe, ficava em silêncio, parecia triste, mas voltava ao assunto. A filha a interrompia, começava uma história, falava do marido, falava mal do marido. A mãe tentava ajudar, dizendo que tivesse paciência, pois as pessoas eram diferentes. Falava vagarosamente. E a filha a interrompia, mais uma vez, dizendo: "Mãe, você está muito lenta, está sem cabeça, você não é mais a mesma. Que pena, mas você não está bem!" A mãe não retrucava. Calava-se, obediente. Voltava ao seu silêncio, como se buscasse, dentro de si, o conforto da própria companhia.
Como aquela conversa me incomodou! Quantas vezes a filha disse para a mãe que ela estava sem cabeça, que não estava bem! Repetir histórias, todos nós fazemos, independentemente, da idade. Quando percebemos que o outro está esquecido, que o tempo trouxe alguma dificuldade à memória, é preciso respeitar. 
Tratar os pais com respeito. Compreender as limitações que todos nós temos em qualquer idade. Não expor as ausências, não ridicularizar, não diminuir quem nos alimentou de vida nos mais fortes anos de suas vidas e que, agora no entardecer, já não têm o mesmo vigor são formas de fortalecer os laços de família, de amor, de acolhimento. Laços que lhes parecem tão fragilizados nessa etapa da vida. 
Ao final, a filha, impaciente, não esperou a mãe terminar de comer. "Vamos, tenho que ir embora, você está comendo muito devagar. Também, você não faz nada. Vamos, eu cuido de você". Cuidar não é isso. Nas palavras, estão instrumentos poderosos de diminuir ou elevar as pessoas. Há gestos que fazemos sem refletir. Tempos que perdemos por não compreender. Pessoas que machucamos por não respeitar. Que pena. 
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 16/01/2015

Imagem Ilustrativa retirada da internet 

04 janeiro 2015

Compaixão e generosidade, da literatura para a vida

Compaixão é ter a capacidade de se colocar no lugar do outro e de sentir a sua paixão, a sua dor. É compreender o estado emocional daquele que padece e, em outras palavras, enxergá-lo.
A generosidade é a virtude de acrescentar algo ao outro, de partilhar, de deixar um pouco de si para preencher o que falta na outra pessoa. São complementares. Filhas do amor. Irmãs da bondade. A literatura é rica em personagens que nos desconcertam pelo onírico concerto de afinar o mundo.
Um dos meus livros preferidos da literatura universal é "Os miseráveis", de Victor Hugo. Uma obra recheada do melhor fermento de sonhos e canções de vida em um mundo destroçado por guerras, autoritarismos e violência.
A obra, composta de cinco volumes, foi publicada quando Victor Hugo tinha 60 anos, mas o fio da narrativa começa a germinar quando, aos 22 anos, o jovem escritor se incomoda com a situação dos prisioneiros da colônia penal de Toulon, de onde saíam os remadores para os trabalhos forçados nas galés, onde remavam com os pés atados em correntes. Tristes cenas. Restos humanos lambuzados de humilhações e dor.  
O tema social, a miséria dos excluídos, marcou a trajetória política e literária de Victor Hugo. Charles Dickens já havia mostrado uma Inglaterra diferente das cortes. Sua denúncia chegava aos que viviam invisivelmente nos submundos de Londres. 
Victor Hugo faz o mesmo em "Os miseráveis". Dramas chocantes de mulheres e homens alijados de bens materiais e de amparos humanos.
A personagem central é Jean Valjean, órfão de pai e de mãe, que foi criado por uma irmã mais velha que tinha sete filhos. Quando ela enviuvou, o menino Jean passa a ser o homem da casa. Em um dia, desesperado, sem ter dinheiro para comprar pão para a irmã e para os seus filhos, Jean furta um pão, o que lhe rende dezenove anos de prisão (cinco pelo pão e quatorze por tentar fugir). Jean passa sua juventude na prisão.
Quando, enfim, deixa o cárcere, perambula por vilarejos em busca de trabalho. É humilhado e temido por ser considerado um bandido perigoso. As portas se fecham na frieza de uma sociedade que não tolera erros alheios, embora seja farta de erros próprios, escondidos. Na sarjeta do abandono, um homem o acolhe, o Monsenhor Bienvenu (que significa bem-vindo). Ele o retira das ruas e o traz para casa para que tenha uma refeição decente e uma cama limpa para dormir. Jean come como um bicho esfomeado e fica arredio. Não acredita que alguém pudesse ser, com ele, generoso. Compaixão, ele certamente só conhecera nos idos da infância quando a irmã o acolhera.
Durante a noite, resolve furtar o Monsenhor. Recolhe o que estava à vista e sai pelas ruas frias de uma noite angustiante. É preso e os soldados o trazem para a casa do Monsenhor para que devolva o que ele furtou. Jean sabia que ficaria o resto da sua vida na prisão. Seria agora um reincidente. Se já era considerado um homem perigoso por ter furtado um pão para alimentar os sobrinhos, imagine agora que teve a ousadia de furtar um homem que lhe dera abrigo, que lhe dera alimento e conforto. Um homem importante. 
Jean está apavorado, amarrado, humilhado pelos guardas quando chega a casa do Monsenhor. Percebendo a situação, o Monsenhor agradece o trabalho dos guardas, mas diz que a prataria que o homem carregava não fora objeto de furto, mas de um presente que ele havia lhe dado. Jean arregala os olhos, desconcertado com a bondade do Monsenhor que pega mais algumas peças que, supostamente, Jean havia "esquecido". "Use a prata para se tornar um homem honesto", foi o que Jean Valjean ouviu daquele homem e o que remoeu para sempre em sua consciência.
Aqui, nesse ato de compaixão, dá-se a transformação de muitas vidas. A de Jean Valjan e a de todos os que, posteriormente, foram abraçados por sua generosidade. 

Da compaixão, nasce uma nova história

A compaixão é um sentimento essencial da convivência. Olhos de ver. Paciência. Tempo de silêncio para que a voz do outro tenha alguém onde depositar sua necessidade. Tempo de fala para que o silêncio do outro não se transforme em solidão. Presença que ameniza ausências. É como estar no deserto da dor e ver surgir o cortejo da esperança.  
Foi assim que floresceu um novo homem. Quem é Jean Valjan? Depois de conhecer o Monsenhor, é um homem sempre pronto para revelar a nobreza dos sentimentos.
Há muitas outras personagens e tramas nesse enredo fantástico de Victor Hugo. E a generosidade de Jean permeia todos os núcleos dessa narrativa. Há uma mãe solteira, Fantine, que fora abandonada pelo homem que tanto amou e que confia a criação de sua filha a um casal que, aparentemente, proporcionaria mais conforto em sua criação. Ela trabalha para pagar esse casal. Para que cuidem bem de sua filha. Somente para isso. Imaginem o que era ser mãe solteira naquela época. A filha, Cosette, na verdade, vive frágil e assustada, porque é maltratada.  Mesmo assim, canta ela a canção da esperança. Quando Fantine morre, Cosette é criada por Jean Valjan até se casar com o idealista Marius Pontmercy, um jovem que sobrevive ao sonho e à utopia de destronar o rei. Aliás, a narrativa de "Os miseráveis" ocorre entre dois episódios históricos: a batalha de Waterloo e os motins de junho de 1832, em que jovens morreram sonhando com um mundo sem privilégios nem preconceitos.
A obra é extensa, mas há um filme recente, de 2012, dirigido por Tom Hooper, que é fiel a essa linda história. Um elenco de peso com atuação irretocável: Hugh Jackman, Russell Crowe, Amanda Seyfried, Samantha Barks, Anne Hathaway, Eddie Redmayne, entre outros. 
Outros filmes e peças de teatro no mundo inteiro mostraram a ousadia de Victor Hugo em revelar a miséria humana, o abandono, a saga dos invisíveis e, mesmo assim, alimentar-nos de esperança. No final, a canção de uma vitória que não cabe nesse mundo. 
Jean Valjan aprende com o lindo gesto do Monsenhor e transforma sua vida em uma vida capaz de cuidar de outras vidas. Até mesmo diante de seu maior perseguidor, o inspetor Javert, consegue ser generoso, compreende as amarras que o impedem de entender o verdadeiro sentido da justiça. Javert se desconcerta frente ao olhar compassivo do homem que ele perseguiu a vida toda. “Ninguém pode ser tão bom quanto Jean Valjan”, rumina ele. Pode sim, especialmente se tiver em seu caminho um Monsenhor Bienvenu.
Bem-vindas a compaixão e a generosidade neste início de mais um ano. Incomodemo-nos com o aprendizado que a literatura nos proporciona. E que mais livros nos aqueçam e ampliem o nosso repertório e a nossa capacidade de contemplar e de transformar o mundo. Feliz 2015.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 04/01/2015