29 dezembro 2014

O primeiro amor

Há livros, à exaustão, que falam do primeiro amor e que nos enveredam pelos mais auspiciosos sentimentos do romantismo. Há canções de amor para todos os gostos. Canções que nos ajudam a atar os olhares e as promessas de amanhãs. Há canções e poemas de recomeços, desabafos exagerados de vida que segue sem as amarras de um amor que findou ou que nem chegou a existir. Embalava o amor em versos, Drummond, nosso poeta:
“Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?”
(...)
“Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.”
O primeiro amor não se trata apenas de Eros, o deus brincalhão que nos fere com sua flecha e nos impede o raciocínio. Paixão que nos embriaga de necessidades, de reciprocidades, de dizeres que nos acalmem. O primeiro amor trata-se, também, de primeiro desejo ou mais profundamente de primeira aspiração.
Imagine um cantor que foi trocando os chuveiros pelos palcos. Mesmo os modestos. E que, a cada show, se lembrava da impressão primeira de subir em um palco e cantar. Ou o artista em sua estreia e nas tantas outras apresentações que se sucederam em sua carreira. Mas sempre com o sabor da primeira impressão, do primeiro amor ao palco.
Sou um artesão das letras e sou grato a todas as pessoas que me deram oportunidade de juntar palavras expressando os significados que brotam das minhas crenças. Crenças que aprendo com os meus irmãos de ofício, lendo os que se foram e os que ainda estão por aqui. Meu primeiro amor, meu primeiro livro, meu primeiro contato com alguns leitores que comentavam as personagens que eu criava e crio.
Sou grato a este jornal, O "Diário de São Paulo", por permitir que, nestas linhas, eu me comunique com leitores que generosamente usam parte do seu tempo para ler os meus escritos. Honra minha. Responsabilidade também.
Neste espaço, durante este ano, falei algumas vezes sobre um homem que, com sua simplicidade e decisão, vem nos servindo de referencial. O Papa Francisco. E, nesta semana, ele falou em "primeiro amor" quando usou algumas incisivas reflexões para os seus irmãos no sacerdócio. Falou o papa em "Alzheimer espiritual" ou esquecimento do primeiro amor de um religioso com a história da sua entrega ao Senhor. Um sacerdote que se distancia do Senhor transforma suas atividades em atos mecânicos. Repete como uma máquina, sem refletir sobre o significado de suas orações. Foi mais a fundo o Santo Padre, falou dos que se sentem imortais ou insubstituíveis e os convidou a visitarem os cemitérios para se lembrarem de que "somos pó e ao pó voltaremos". Falou em empedernimento ou perda da sensibilidade. "É perigoso perder a sensibilidade humana necessária que nos faz chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram! É a doença dos que perdem os ‘sentimentos de Jesus’ porque o seu coração, com o passar do tempo, endurece e torna-se incapaz de amar incondicionalmente ao Pai e ao próximo”. Falou em esquizofrenia espiritual, em hipocrisia, em rivalidade e vanglória. Criticou a sisudez e elogiou o bom humor. Criticou as torpes palavras que servem para destruir o outro, a fofoca, o maldizer e abençoou os encontros generosos.
Há tanto de sabedoria nos dizeres desse homem que impressiona o mundo com sua capacidade de fazer pontes, de dialogar, de unir os homens nos mais elevados sentimentos de compaixão e amor.
O primeiro amor é combustível para que os vícios nos abandonem. Se o discurso do papa se dirigia aos membros da cúpula do Vaticano, é útil para qualquer cidadão que se esquece do primeiro amor e vive das migalhas que sobram dos ódios lançados contra o seu irmão. 
Quão nobre é o ofício do médico ou do enfermeiro que cuidam de vidas e quão tosca é sua atuação quando se transformam em burocratas de procedimentos e se esquecem das razões que os motivaram a dedicar a vida a amenizar a dor. 
O fim do ano é tempo de agradecimentos e de propósitos. Para agradecer, é preciso recordar. Lembrar o que se foi e que merece ser revisitado. Agradecer o que se conquistou e às pessoas que foram essenciais nessa conquista. Agradecer o que se perdeu porque talvez não coubesse junto com outras conquistas que vieram. Lembrar os inícios. Do primeiro amor que gerou uma família ou uma amizade ou uma profissão ou uma incursão por uma ação que mudou a vida de pessoas. E ter propósitos. Que o primeiro amor se converta em um eterno amor. “O amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos”, poetizou Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. Nos enlaces de Eros, a paixão vai se transformando em cumplicidade que desafia o tempo. Como é lindo ver um casal que se reinventa nos ditos românticos depois de 20, 30, 40 anos ou mais de relação. Como é bonito ver um juiz que, depois de 30 anos de carreira, ainda se lembra do primeiro amor em um primeiro julgamento em que foi capaz de fazer justiça. Ou de um construtor que nunca esquece a primeira edificação. 
Edifiquemos no próximo ano, junto ao altar das nossas capacidades, a nossa disposição de vencer as doenças da alma que nos afastam do outro e de nós mesmos. 
Ao primeiro amor, o brinde de ano novo! 
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 28/12/2014

07 dezembro 2014

50 anos celebrando o Amor


Monsenhor Jonas Abib está celebrando 50 anos de ordenação sacerdotal. Nascido em Elias Fausto, o menino que, em São Paulo, estudou com os Salesianos no Liceu Coração de Jesus teve em seu coração o ardente desejo de servir a Deus cuidando dos jovens. Enfrentou doenças, dificuldades, pedras tantas que lhe roubaram lágrimas, mas nunca a fé. A fé guiou seus passos para criar uma pequena comunidade que se tornou gigante e está presente em diversos países no mundo todo. A Canção Nova surgiu de um sonho do Padre Jonas de "formar homens novos para um mundo novo". Homens e mulheres que soubessem encontrar um sentido para viver. Homens e mulheres que experimentassem a real felicidade de viver o cristianismo.

Começou pregando em retiro de jovens. Revolucionário, usava o violão em suas celebrações. Compunha lindas canções que tocavam a alma e apresentavam um Deus capaz de nos surpreender, de nos alimentar de esperança e de fazer preservar em nós a alegria. Conceitos que o embalaram. Sintática da inesquecível homilia do Papa Francisco, muitos anos depois,  na Missa de Aparecida.

O jovem Jonas Abib ficou doente, tuberculoso, e aproveitou o momento para cantar com os internos do sanatório e celebrar com eles a missa de natal. Preparou entre os tuberculosos o aniversário do menino Jesus. Jesus, o Deus que Se fez homem e que jamais discriminou ninguém, nem os que mais sofriam preconceitos, em Sua época, como os tuberculosos.

Jesus amou as mulheres em tempos difíceis para elas. Padre Jonas quis começar sua comunidade com mulheres e homens, juntos, convivendo em harmonia. Alguns estranharam. O que fariam esses jovens vivendo juntos? Ele via além. Fariam o bem. Experimentariam a vida comunitária como os primeiros cristãos. Viveriam a pedagogia do encontro. E, no encontro com Deus, seriam capazes de comunicar ao mundo a verdade que os embalava.

Padre Jonas começou seu programa de rádio, no início da Comunidade Canção Nova, falando em Sistema Canção Nova de Comunicação. Uma rádio que só pegava na minha amada Cachoeira Paulista, minha cidade natal. Mas os olhos do profeta do Amor queriam mais. Queriam que sua mensagem chegasse a outros cantos. Principalmente nos cantos de dor em que jovens desesperados corriam os riscos de renunciar à liberdade para viver nas presas da violência, das drogas, da ausência de amor. Seu lema: “Não desista de ninguém, pois Deus não desiste de nós”.
O tempo foi passando.

Suas canções falam de sua entrega, da liberdade que em Deus ele encontra:

Quero transformar numa canção,
As juras de amor por Ti, meu Deus.
Entraste em minha vida sedutor,
Já não sei viver sem Teu amor.
Tudo Te entreguei, nada me restou,
Livre eu fiquei para Te amar, meu Deus.
Tudo me pediste, nada eu Te neguei,
Hoje eu sou feliz assim, tenho a  Ti,  meu Deus.

Suas canções trazem a poética do encontro. O necessário silêncio. A oração que nos aproxima de nós mesmos, que nos conduz ao âmago do que nos realiza:

Ouço Teu silêncio, meu Senhor, para distinguir só Tua voz.
Busco meu cantinho sem ninguém para só Contigo eu ficar.
Eu Te busquei no barulho, só encontrei solidão.
Eu quis me encher de prazeres e mais vazio fiquei, meu Senhor.
Mas hoje Te encontro na flor, nas ondas do mar, no azul deste céu.
Hoje Te encontro, meu Deus, num gesto de amor sem nada esperar.

Monsenhor Jonas Abib celebra 50 anos de padre. Ainda tem a vivacidade e a esperança de um menino.  O mesmo entusiasmo. Tem as mãos e o coração plenos de Deus. Sua sabedoria mescla-se com sua simplicidade. A simplicidade de um homem que tem fé, que crê nas possibilidades, que acredita que o reino de Deus começa aqui e agora. Uma vida inteira dedicada ao bem. Com leveza, com suavidade, com coragem.
Em um mundo carente de referenciais, é bom conhecer um pouco mais a sua história. É bom saber que existe água no deserto, que se avista luz na escuridão, que se tem esperança na dor. Aliás, dor e esperança coexistem. Basta compreender. Para isso, Monsenhor Jonas ensina: “A vida não terminou. E já dizia o poeta ‘ que os sonhos não envelhecem’”.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 7/12/2014

05 dezembro 2014

A educação de todo dia

Um carro passa com a janela aberta. Alguém joga algo na rua. Fato do cotidiano. Fato feio do cotidiano. Não importa se o carro é de luxo ou não. Se seus ocupantes têm mais ou menos dinheiro, se têm formação universitária ou não. O que chama a atenção é a ausência de cidadania. É o descuido com o espaço público. É o desrespeito ao outro.
Quantas vezes, ao dar a última aula, pedi aos alunos que olhassem ao seu redor. Eram papéis espalhados pelo chão, restos de lápis, papéis de bala, entre outras coisas. Pedia-lhes que pensassem no pessoal da faxina vendo aquela sujeira. Seria correto deixar para o outro o dever de cada um de nós de jogar o próprio lixo no lixo? E, então, juntos, recolhíamos tudo. O resultado era surpreendente. Nas aulas seguintes, não se via mais sujeira pelo chão. Acredito na educação que provoca reflexão e transforma atitudes. Quando nos preocupamos em ensinar as teorias matemáticas ou geográficas, estamos certos. Ou teorias de química e física. Ou o apuro para a compreensão das múltiplas linguagens que a arte nos proporciona: teatro, cinema, música, artes plásticas, etc. Tudo isso é fundamental para preparamos os profissionais que comandarão pessoas e organizações. Mas a educação vai além. É o hábito de fazer o correto, no dia a dia, em qualquer situação. É a riqueza de ensinar pelos bons exemplos.
Carros em filas duplas, vagas de pessoas com deficiência ou de idosos ocupadas de forma inadequada, comportamento violento nos esportes, descumprimento das regras, zombaria às pessoas, piadas preconceituosas, ausência de civilidade no trato com o outro. Tudo isso deseduca e compromete as relações humanas. Um filho que assiste a uma atitude não cidadã de seus pais vai imitá-los, certamente. É preciso lhes oferecer, com amor e responsabilidade, água limpa e cristalina para ser absorvida. É nosso dever optar pela verdade, pelo ético, pelo bem comum. Sempre. Pelos bons exemplos que educam, que elevam, que enriquecem a convivência.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 5/12/2014

04 dezembro 2014

Escola não tem o poder de substituir educação que vem de casa


Fico feliz ao ver quanta gente de diferentes áreas escreve e opina sobre educação. Há um movimento da sociedade, muito positivo, que acredita ser a educação a garantidora de melhores tempos para nosso país.
Todos os temas da vida humana passam pela educação. A ética depende da educação. É preciso ensinar a honestidade. O fim dos preconceitos também carece de uma educação capaz de entranhar (termo aristotélico) as mais belas verdades sobre o respeito e a convivência plural. As tantas competências exigidas por um mercado cada vez mais competitivo dependem de uma educação de qualidade. O bem escrever, o bem falar, o bem realizar conexões desenvolvendo autonomia e senso crítico também dependem da educação.
Evidentemente, a educação não é um processo que se esgota em sala de aula. Tudo educa. E tudo pode deseducar. Por isso, é preciso formar a capacidade reflexiva para discernir entre o correto e o errado. Nossa vida é determinada por escolhas. Saber escolher também depende da educação que forja nosso caráter.
O artigo 205 da Constituição Federal evidencia o necessário em um processo educativo: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".
A educação é direito de todos. Isso me parece pacificado. É dever do Estado e da família. Portanto, não apenas do Estado. A família tem papel essencial assim como a sociedade. O artigo elenca, ainda, os objetivos da educação, quais sejam: o pleno desenvolvimento da pessoa, com todas as suas complexidades racionais e emocionais; o exercício da cidadania, com a compreensão e a prática de direitos e deveres; e a qualificação para o mercado de trabalho, fazendo com que se transforme informação e conhecimento em benefício para a sociedade.
Sabedores de que precisamos formar a pessoa e prepará-la para o mercado de trabalho, faz-se mister refletir sobre as formas de educar para esses fins.

Tripé da educação

Poderíamos nos deter nas estatísticas internacionais, analisando os indicadores de qualidade que mudaram o cenário de países como a Coréia do Sul e, mais recentemente, a China. Ou, ainda, trazermos um exemplo mais próximo como o Chile. Entretanto, há três pontos convergentes nesses sistemas sobre os quais educadores brasileiros já se debruçaram. Chamo-os de "o tripé da educação com qualidade".
O primeiro ponto é o professor. Mesmo em tempos de alta tecnologia e de todo o aparato presente na sala de aula ou nos ambientes virtuais, é o professor a alma do processo educativo. E, por isso, a carreira de professor deve ser desejada, valorizada, respeitada.
Fico pasmo quando leio alguns opinantes sobre educação afirmarem que não é relevante dar um bom salário ao professor. Sejamos mais profissionais. Remunera-se muito mal o professor. E mesmo não ganhando bem, a maioria desempenha com mestria seu papel. Há, sim, abnegados que abraçam a educação como bandeira de vida e que, independentemente do quanto recebem, fazem prodígios nas salas de aula.
Precisamos de milhares e milhares de professores para atender à demanda do ensino de qualidade. E isso requer que jovens tenham o desejo de abraçar o magistério como profissão. Se não tivermos um salário digno e um plano de carreira atraente, os jovens não optarão por essa profissão. Sem professores, como vamos educar? Uma remuneração justa, uma formação continuada que garanta qualidade, atualização, entusiasmo dos que ensinam nas salas de aula presenciais ou a distância compõem o primeiro ponto.
O segundo ponto é o currículo inteligente, significativo, que obedeça ao que indica o artigo 205 da Constituição, ou seja, que forme a pessoa, o cidadão, e que o prepare para o mercado de trabalho. Estamos muito atrasados nas escolas em tempo integral em oposição a todos os outros países que, avaliados pelo PISA, conseguem se destacar em qualidade.
Um currículo inteligente intercala teoria e prática, oferece problemas para desafiar os alunos, inquieta para que a habilidade cognitiva seja despertada e socializa as emoções para que o encontro com os diferentes (e diferentes são todos) forme uma cultura de paz. É preciso levar em conta que os alunos são menos atentos. A "geração do instantâneo" não consegue ficar quieta, ouvindo um professor falar durante muito tempo.
O currículo inteligente abrange uma arquitetura diferenciada da sala de aula. Estações de aprendizagem são mais eficazes do que a antiga disposição das carteiras enfileiradas com o professor à frente. Estando o dia todo na escola, o aluno conseguirá suprir suas deficiências e ampliar o horizonte do aprendizado.
O terceiro ponto é a participação familiar. É a família a educadora por excelência. Por melhor que seja uma escola, ela não terá o poder de substituir uma família ausente ou uma família que diz ou pratica anti-valores que colidem com a obrigação de formar a pessoa. Preconceitos nascem em famílias que se desrespeitam. Vejam os índices de violência doméstica. A casa é o primeiro ambiente a educar.
A escola pode ajudar os pais a refletirem sobre a complexa tarefa de educar. Se o mundo virtual é importante, é preciso ter limites. Como em tudo na vida. Os pais contadores de história são fundamentais para o desenvolvimento da curiosidade e da inteligência, além da dimensão afetiva. A cena de uma mãe ou de um pai lendo ou contando histórias para os filhos vale muito mais do que brinquedos e computadores caros. São universos que vão povoando uma mente em formação.
Professores, currículo inteligente, participação familiar. Esse é o tripé de que precisamos. Sem muitos malabarismos. Mas presente em todas as escolas como obrigação de governantes nas esferas federal, estadual e municipal. Um caminho que precisa ser percorrido sob pena de desperdiçarmos o futuro.
Por: Gabriel Chalita (fonte: UOL) | Data: 3/12/2014

O amor em qualquer idade


Está em cartaz nos cinemas brasileiros um filme delicado, bem dirigido e com uma temática atualíssima: o amor. O amor na maturidade. O amor capaz de tudo para surpreender e alimentar os sonhos de uma vida inteira. Elsa e Fred.
Elsa, interpretada por Shirley MacLaine, é uma mulher romântica que mistura ficção com realidade (é mais elegante dizer assim do que falar que, não poucas vezes, ela mente) e que sonha em recriar a clássica cena de "A Doce Vida", de Frederico Fellini, na Fontana di Trevi. É mãe protetora. É mulher apaixonada. Entrega-se à vida e aos seus encantamentos. Fred, interpretado por Christopher Plummer, é um homem ainda de luto pela recente viuvez. Pacato. Hipocondríaco. Para Elsa, cada dia, é uma oportunidade de viver. Para ele, é só mais um dia. Essa história de amor começa com a mudança de Fred, a contragosto, para um apartamento arranjado pela filha que gostaria de tomar conta do pai. Estão os dois no mesmo prédio, Elsa e Fred. E, depois de um pequeno acidente, acabam se encontrando. Totalmente diferentes, vão se completando pelas surpresas que a vida oferece e pela capacidade de reinventar a própria história.
Elsa está doente, com gravidade. Fred quer dar a ela a oportunidade de realizar seu sonho de entrar na Fontana di Trevi, em Roma, revivendo Anita Ekberg e Marcello Mastroianni, no filme de Fellini, que marcou a história do cinema.
Além de estar em cartaz nos cinemas, essa refilmagem do longa argentino de 2005, dirigido e roteirizado por Marcos Carnevale, está também no teatro com dois atores geniais: Suely Franco e Umberto Magnani. A história é a mesma. Há momentos muito divertidos. Suely leva a plateia às gargalhadas. E há momentos profundamente emocionantes e educativos. A relação da mãe com os filhos e a do pai com a filha rendem boas reflexões.
É interessante como vêm fazendo sucesso essas histórias de amor que quebram os clichês do mocinho e da mocinha jovens, lindos, perfeitos. Talvez isso aconteça porque o público se identifica com essas histórias, tão próximas da vida real. Todos queremos alimentar a esperança de que não deixaremos de amar quando os tempos da juventude já tiverem se despedido.
Palavras de amor
As palavras contagiam. E os sentimentos vividos por personagens do cinema e da literatura permanecem conosco. Nos minutos seguintes e pelo resto dos nossos dias. Mesmo que inconscientemente. E a literatura, assim como a dramaturgia, nos presenteia com histórias de amor vividas durante a melhor idade. Em “Carta a D.”, André Gorz, autor de tratados sobre filosofia e sociologia, escreveu sobre o amor pela sua esposa, Dorine. Em suas páginas, vemos o amor de uma vida inteira transformar-se em palavras tão belas quanto o sentimento que as inspira. “Eu gostava da sua fragilidade superada, admirava sua força frágil. Nós éramos, eu e você, filhos da precariedade e do conflito. Fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado. Para isso, no entanto, seria necessário que o nosso amor fosse também um pacto para a vida inteira.”
Depois de quase sessenta anos juntos, Gorz reconstrói a história dos dois nesta carta, endereçada a D. e a todos os que amam. Este livro não é mais uma história bonita entre duas pessoas que se amam. É um verdadeiro tratado sobre o mais nobre e transformador dos sentimentos humanos. As páginas avançam permeadas de afeto, de reflexões, de cumplicidade, de magnetismo. De amor de verdade. E como tudo o que é verdadeiro, o amor de André Gorz e de Dorine desafia o tempo, suas destemperanças, e nos contagia mostrando uma nova face desse sentimento. A sua beleza na maturidade.
As cartas também exerceram um papel importante na união de um casal clássico da literatura universal. Em “O amor nos tempos de cólera”, do mestre do realismo mágico, Gabriel García Márquez, Florentino apaixona-se por Fermina e, após um longo período de troca de correspondências, declara seu amor por ela. A vida não permitiu que essa união fosse selada durante a juventude. Mas o amor venceu o tempo, e Florentino esperou sua “deusa coroada” por 51 anos. O tempo é sempre generoso com quem o respeita. Com quem reconhece que não existe hora certa para viver uma história de amor. Com quem descobre que o amor é ainda mais belo na maturidade e que sempre é tempo para findar o tempo das ausências.

“Elsa & Fred” nos cinemas:
Dirigido por Michael Radford. Com Shirley MacLaine e Christopher Plummer, interpretando Elsa e Fred, respectivamente.

Tempo de delicadeza x Tempo de horror

De tempos em tempos, surgem pesquisas mostrando dados alarmantes sobre a violência contra a mulher. E, de tempos em tempos, crio a expectativa de que o tempo da delicadeza vença o tempo do horror, da covardia, mas não é isso o que vem ocorrendo. Infelizmente.
Dados recentes da ONU mostram que uma a cada três mulheres no mundo já sofreu violência física ou sexual. Mais de 100 milhões de mulheres e meninas sofreram mutilação genital. No Brasil, segundo dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres, a cada 12 segundos, uma mulher sofre violência sexual. Há outro dado, também assustador, que aponta que mais de 70% das agressões contra a mulher ocorrem no domicílio da vítima: pelos pais, irmãos, tios, padrastos etc. Não raro, os abusos desses homens são de conhecimento até mesmo de outra mulher da família que, por medo ou por vergonha, encobre o agressor. Muitos desses homens violentos justificam sua ação perversa e covarde como ato de amor. Amor? Quem ama respeita. Quem ama cuida. 
Quem decide partilhar a vida com alguém precisa compreender que momentos de instabilidade surgirão, mas que não serão resolvidos pela violência. Somos seres inteligentes, capazes de dialogar, aptos a compreender as nossas diferenças. É preciso acabar com essa história de maldade, de dor, de desrespeito. E as mulheres também têm um papel fundamental nessa batalha. Tolerar qualquer gesto de violência, por menor que ele pareça ser, é abrir as portas para agressões mais sérias. Brincadeiras em que o outro se torna o brinquedo não devem frequentar o convívio humano. É bom ver ONGs se mobilizando, a mídia alertando, a sociedade compreendendo e agindo.
Toda atitude machista é vergonhosa. Uma atitude violenta, além de criminosa, é horrenda. Mostremos a nossa melhor face. A face dos que caminham de mãos dadas, sem tempo nem disposição para atirar pedras.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 28/11/2014

19 novembro 2014

Resenha: A menina que roubava livros

A Menina que Roubava Livros
ISBN-13: 9788598078373
ISBN-10: 8598078379
Ano: 2014 / Páginas: 478
Idioma: português 
Editora: Intrínseca 

A trajetória de Liesel Meminger é contada por uma narradora mórbida, porém surpreendentemente simpática. Ao perceber que a pequena ladra de livros lhe escapa, a Morte afeiçoa-se à menina e rastreia suas pegadas de 1939 a 1943. Traços de uma sobrevivente - a mãe comunista, perseguida pelo nazismo, envia Liesel e o irmão para o subúrbio pobre de uma cidade alemã, onde um casal se dispõe a adotá-los em troca de dinheiro. O garoto morre no trajeto e é enterrado por um coveiro que deixa cair um livro na neve. É o primeiro de uma série que a menina vai surrupiar ao longo dos anos. Essa obra, que ela ainda não sabe ler, é seu único vínculo com a família. Assombrada por pesadelos, ela compensa o medo e a solidão das noites com a cumplicidade do pai adotivo, um pintor de parede bonachão que a ensina a ler. Em tempos de livros incendiados, o gosto de roubá-los deu à menina uma alcunha e uma ocupação; a sede de conhecimento deu-lhe um propósito. A vida na rua Himmel é a pseudorrealidade criada em torno do culto a Hitler na Segunda Guerra. Ela assiste à eufórica celebração do aniversário do Führer pela vizinhança. Teme a dona da loja da esquina, colaboradora do Terceiro Reich. Faz amizade com um garoto obrigado a integrar a Juventude Hitlerista. E ajuda o pai a esconder no porão um jovem judeu que escreve livros artesanais para contar a sua parte naquela história. A Morte, perplexa diante da violência humana, dá um tom leve e divertido à narrativa desse duro confronto entre a infância perdida e a crueldade do mundo adulto.

Sinopse: Skoob



"Uma tentativa que é um salto gigantesco de me provar que você e sua existência humana vale a pena”.


Essa frase,  me chamou muita atenção. E é  a partir dela que pude construir, a base para o desenrola de  toda a história, maravilhosamente construída.

O livro tem como narrador a morte, e essa frase,  me chamou muito a atenção, em um cenário, frio, como pano de fundo a guerra. Esse livro parece, ser triste, sombrio, e angustiante.

Mais não  é . A doçura de Liesel Meminger,  Transforma essa história em uma grande e encantadora, e muitas vezes, engraçada.  História que vale muito a pena ler e também assistir o filme. No meu caso assisti o filme antes de ler o livro, e já advirto. O livro é muito, muito, mais incrível.

"Acho que os seres humanos gostam de assistir a uma destruiçãozinha. Castelos de areia, castelos de cartas, é por ai que começam".


 "Não tenha medo. Sou tudo,menos injusta".


 "Não há dúvida de que ela era uma roubadora de livros,mas isso não queria dizer que não devesse ter modos. Não significava que não pudesse ser educada".

"Como era apropriado que descobrisse o poder das palavras!

O que Liesel, me ensinou. sobre a vida é que independente do contexto em que vivemos os livros serão  sempre, um belo e encantador refugio. O primeiro livro de Liesel foi o manual do coveiro. Quando Liesel e seu irmão estavam viajando para Munique, onde seriam entregues aos pais adotivos o  irmão caçula, Werner  morreu.  No enterro do irmão Liesel ficou  de  joelhos diante da cova  em meio a neve cavando com as mãos tentando tirar o irmão de lá. A mãe ver o desespero na filha e a pega pelas mãos para  ir embora do cemitério.   Liesel vui no meio na neve algo  preto e retangular levada pela curiosidade, ela  se curvou e pegou o objeto esse foi o primeiro furto da roubadora de livros.


A menina seguiu viagem até chegar a Rua Himmel. O novo endereço seu, novo mundo . Ela agora é a  filha dos Hubermann. Rosa e Hans  Hubermann. Rosa é uma mulher de gênio forte mais no fundo tinha um bom coração. Já Hans, é o oposto na esposa, doce e paciente. Rosa lavava roupa para fora, Hans era pintor, e  todas as noites gosta de tocar acordeão. O casal,é  pobre, mas generosos o suficiente para adotar duas crianças, porém só a menina chegou a casa dos Hubermann.


 Rudy Steiner. O o vizinho, melhor amigo de Liesel. Companheiro para todas as horas. Um detalhe sobre ele  (vivia sempre com fome). Esses dos vão viver uma linda amizade e se depender de Rudy, será algo muito além da amizade.

"Mais uma prova de como o ser humano é contraditório. Um punhado de bem, um punhado de mal. É só misturar com água".

 "Os seres humanos me assombram"

A menina que roubava livros, se refugiava no porão, de sua casa, para encontrar nas palavras, o encanto, a emoção, e o prazer.em uma época de guerra, fome e medo.

Do encanto que as palavras a proporciona, uma linda amizade, com o amigo, Rudy. O amor incondicional do pai adotivo. E da dedicação, apesar de ser rude e carrancuda, da mãe adotiva. Liesel. Passa por  muitos momentos lindos, outros traumáticos. Uma história inesquecível, um dos melhores , livros que já li.


O grande, feito do escritor, ao escrever, está história. É o fato de ser narrada pela morte, que se impressiona, diante do jeito, extraordinário, que Liesel, vive dia, após dia. Em meio a tantas adversidades. Resumindo a morte se encantou pelo jeito de viver de Liesel   

Por Bia Oliveira


Também indico o filme . É maravilhoso.


Sobre o Autor :


16 novembro 2014

O último voo do poeta

Nosso poeta Manoel de Barros voou. Estamos comovidos, em silêncio, buscando ouvir o último ruflar de suas asas. Nosso poeta desejou tanto usar “palavras de ave para escrever”; mas cometeu muito mais do que isso: suas palavras se fizeram asas para além do voo. E permanecem no ar, ora soltas, ora em frases, desafiando-nos a capturá-las. O poeta, que nasceu menino, partiu menino. Fez de sua maturidade a sua segunda infância; uma vida em poesia. Fez de sua arte um brinquedo. Despojado de regras e convenções, descontruiu a linguagem, poetizou a natureza e o mundo, vestiu de singeleza as palavras. Fez da vida sua arte de simplicidade. Dizia que sua poesia era difícil de ser compreendida, embora fosse feita com palavras simples. Muitos não entendiam essa declaração. Mas é preciso fazer-se criança para compreender. Admirar-se. Encantar-se. Desinventar-se. 
Manoel de Barros nasceu às margens de um rio, cresceu menino do mato e amigo do silêncio. A palavra sempre foi seu jogo predileto. Durante a semana, a escola ocupava seu tempo, mas, nos fins de semana, eram os jogos de futebol e os livros do padre Antônio Vieira que o envolviam. Mas antes de testar em versos os “seus deslimites”, estudou Direito, formou-se e passou por uma dezena de empregos. Não via prazer em nada daquilo. Queria mesmo era “usar palavras de ave para escrever”. Ter liberdade para redescobrir a vida em versos. A vida de amor ao lado de dona Stella, sua doce e cuidadosa ‘Dona Pássara’. Quando se conheceram, há mais de 60 anos, Manoel era vendedor de imóveis. Stella estava decidida a não se casar. Procurava um lugar para morar sozinha. Manoel, em vez de encontrar um apartamento para ela, abriu as portas de uma vida a dois. Foram para o Pantanal. Cultivaram a terra e seus frutos. Um deles, o tempo para a literatura. Manoel passava os dias em seu escritório. No seu “lugar de ser inútil”, como gostava de dizer. O desabrochar de seus poemas se dava nos blocos de papel que ele mesmo fazia. Passava horas para desenhar um verso. A lápis. Livre de qualquer paradigma. E, assim, voava observando pedras, sapos, galinhas e amanheceres. Coisas “desimportantes”, segundo ele.
Manoel de Barros colhia na natureza a singeleza da vida e a beleza de seus poemas. Desejava que um “passarinho escolhesse a sua voz para seus (meus) cantos”. Acreditava que “falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores/ Faz comunhão com as aves/ Faz comunhão com as chuvas (...)”. Ele olhava para o que poucos percebem. E assim aumentava o mundo e sua singeleza. Em seus versos, as coisas, a natureza e os homens se misturam em uma sinestesia de cores com cheiros, de olhares que falam. Depois de seus poemas, somos outros, alargamo-nos. Entramos riacho e saímos rio. Sua arte muda nosso jeito de ver. De sentir. De viver. Manoel era de sorriso largo. De esticar horizontes. Cresceu menino. E, menino, despediu-se de nós, na última quinta-feira, aos 97 anos. O poeta que nunca gostou que colocassem data na existência vive, para sempre, no quando.
Enquanto ele nos faz saudade, certamente, está dando boas risadas, “conversando sobre nada e passarinhos”, de olhos dados com seu grande e amado amigo Bernardo, personagem de tantos de seus escritos. O pássaro voltou ao ninho e, de lá, pousado em algum tronco de árvore, ainda nos ensina a compor silêncios com suas palavras.   

As bênçãos 

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.
Manoel de Barros

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 16/11/2014 | Foto: Divulgação

O filho da mãe

A mãe é cozinheira em casa de família. Não pensa em aposentadoria, embora esteja perto dos 70 anos. Gosta do que faz. O filho único é advogado. Estudou em uma universidade particular paga pela mãe. Formado há alguns anos, tem clientes importantes. Veste-se bem. Mora em um bom apartamento. A mãe preferiu ficar no seu canto. Um canto distante do trabalho e da vida do filho. Não reclama. Comenta que o transporte público está melhorando. No percurso, tem tempo para pensar, para rezar, para agradecer a Deus por sua vida. Ficou viúva muito nova. Com um problema sério na coluna, quase morreu no único parto. Resistiu e resiste às dores que surgem. Sem lamentos, sem queixumes.
O filho não a visita muito. Diz que falta assunto, que vivem em mundos diferentes. Ele é casado, e a esposa acha estranho ter uma sogra cozinheira. E não acha bom que os filhos convivam com a avó. “Muito rústica”, na opinião da nora.
Conheci essa cozinheira. Sua patroa é um encanto e foi ela quem me contou a história do filho. Por acaso, eu também o conheço. Um dia nos encontramos em uma universidade e disse a ele que conhecera sua mãe. Ele corou, constrangido. Pediu-me que perdoasse a simplicidade dela. E buscou todo tipo de desculpas por ter nascido em um lar tão acanhado. Ouvi com tristeza e tentei ajudá-lo. Falei de meu pai que conheci empresário, mas que, antes, fora servente de escola e feirante, e que era profundamente simples. Disse que foi ele o maior mestre que tive na vida. Quisera eu ter a mansidão, a generosidade, a sabedoria de meu pai! Ele ouviu e falou que gostaria muito de tê-lo conhecido. Eu não desperdicei a oportunidade, "Sabe que sua mãe lembra muito meu pai?".
Não os encontrei mais, mas conheço histórias semelhantes. Filhos que se envergonham dos pais, porque frequentam ambientes requintados, têm amigos importantes etc. Tristes árvores que negam as raízes. Sentimentos mesquinhos de quem pouco entende de sentimentos. Saudade de meu pai!
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 14/11/2014

Belos cabelos brancos

Conheci duas senhoras numa missa. Logo que cheguei, uma delas me abriu um sorriso, dando-me boas vindas. Disse que eu era lindo. Eu retribuí. Ela disse que já era velha. Respondi que a beleza não se esvai com o tempo. Ela concordou, sorrindo, e me informou que ia completar 93 anos. A amiga já fizera 90. Contou-me que toma meia taça de vinho tinto toda noite por sugestão médica. A de 90 disse que faz o mesmo. A de 93 reagiu, dizendo que ela tomava a taça inteira e que ocultava isso do médico. A amiga riu e explicou que nem tudo deve ser dito.
Uma pessoa, no banco de trás, tossiu. A senhora de 93 ofereceu uma pastilha. Explicou-me que sempre carrega pastilhas para aliviar sua tosse e a dos outros. A missa começou. A 1a leitura era do Livro da Sabedoria sobre a honra da velhice: "mas os cabelos brancos são uma vida sensata. A de 90 olhou para a de 93 e disse, baixinho: "Viu? Estão falando da gente!". E brincou: “E eles nem sabem que disfarçamos a brancura dos cabelos". A missa prosseguiu. Rezaram, cantaram, comungaram e ensinaram a estar em comunhão. Ao final, conversamos um pouco mais. Confidenciaram-me o segredo de viver tanto e tão bem. A de 93 disse que havia optado pela alegria e que, por isso, “dava banho” na alma, não permitindo que nenhuma sujeira permanecesse. Nem raiva, nem ressentimento, nem frustração pelo que não acontecera. "Até porque muita coisa ainda há de acontecer, pois não tenho pressa nenhuma de morrer". A de 90 acrescentou: "Ela sempre foi muito namoradeira". A de 93 não se fez de rogada: "E tem graça viver sem amor"?
Belos cabelos brancos têm aquelas duas. Amigas desde a escola. Casaram. Vieram os filhos. Foram-se os maridos. Choraram o tempo certo. Deles se lembram, mas sem dor. O ritmo diminuiu. Perderam forças físicas. Tomam mais cuidado para não cair. Sabem mais de tropeços do que antes. Mas o essencial é que elas continuam achando que  viver é bom demais.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 07/11/2014
Imagem retirada na internet 


02 novembro 2014

Nita e Paulo Freire, um livro sobre o amor


Nita Freire nos presenteou com os detalhes cotidianos do apaixonado Paulo Freire. Conta que estavam os dois vivendo o luto da despedida. Ela havia enviuvado, depois de um casamento de quase 30 anos. Ele havia perdido Elza, de quem fora cúmplice de sonhos e afagos durante 42 anos. Encontraram-se nos desencontros. Encantaram-se.
Os relatos trazem a adolescência da paixão nos anos de maturidade. Não há idade para amar. Nita revigora uma frase corriqueira na vida de Paulo Freire: "eu optei por viver". Bilhetes em cardápios de avião, em guardanapos. Poemas lidos com vagar nos telefonemas apaixonados, quando estavam distantes. Paulo, o patrono da educação brasileira, era um homem romântico. Com as mulheres que amou e com as causas que abraçou.
No pouco convívio que tive com Paulo Freire, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o que mais me chamava atenção era o seu "gostar de viver". Não pode ser educador quem não gosta de viver. Gostar de viver é permitir que o encantamento do encontro revele-se aos aprendizes e os prepare para os encontros tantos que a vida há de proporcionar. Fala Paulo Freire em esperança, em autonomia, em tolerância, em boniteza. A vida é bonita, mesmo diante das feiuras que insistimos em construir. “A vida é bonita, é bonita e é bonita”, cantava o poeta Gonzaguinha que ficava “com a pureza da resposta das crianças". Paulo Freire é puro, sem ser ingênuo. É crente, sem ser estreito. É livre, sem ser descompromissado. Conquistou os educadores do Brasil e de tantos outros cantos do mundo. Do quintal de sua pequena Jaboatão aos quintais do mundo, sua curiosidade buscou, incansavelmente, caminhos de justiça para a concretização de seu sonho maior: uma educação igualitária. Foi criticado por aqueles que não compreenderam a dimensão dos seus ditos, o protagonismo da sua aspiração. Mas encarava com leveza: “Nita, não importa o que fazem com o que digo e com o que penso e faço. Se me distorcem, o problema não é meu, é de quem o faz!”. Críticos, há por todos os lados; Paulo Freire, não. É único. E é nosso, um brasileiro.
Queria ele uma educação libertadora. Que desse a todos as condições para o desenvolvimento do seu talento. Sem discriminação. Sem exclusão. Defendia os professores como multiplicadores dessa boa nova que é a educação. A que forma as gentes, a que prepara para os fatos corretos. Nita nos revela que Paulo Freire foi um eterno menino, até o momento de sua morte: “Paulo nunca quis perder sua alegria-menina e sua enorme tolerância com relação a fragilidades humanas. Em certos momentos, pensei que seria importante chamar-lhe a atenção sobre esse jeito sem limites de generosidade de entrega aos outros e outras, aliás, devo reconhecer, uma de suas maiores virtudes, mas ele não me dava ouvidos.” . Um homem sério, com a alma inocente e a boa fé de um menino.
Quando participo, hoje, de congressos internacionais e vejo tantas teses atuais sobre a prática educativa, sobre o sonho de uma educação para todos, sobre o amor pelo ofício de professor, lembro-me, com orgulho e respeito, de Paulo Freire. O homem que amava as coisas do povo. O homem da antevisão. Disse tanto. Fez tanto. E jamais negligenciou a responsabilidade de cuidar das pessoas. Educar é isto. É não desistir nunca do outro.
Descrição
Nós dois é um convite aos leitores de Paulo Freire e de Nita Freire, para que conheçam um pouco mais sobre a vida e a história de amor do casal. Uma reunião de cartas, bilhetes, fotos que nos ajuda a reconstruir a trajetória de encantamento que uniu os dois. Uma experiência que merece ser dividida para que mais pessoas percebam o quanto uma união calcada no respeito e na admiração pode transformar duas vidas.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 02/11/2014

31 outubro 2014

31 de outubro é dia de celebrar o nascimento do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade




Na data em que se celebra o nascimento de Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores nomes da poesia e prosa brasileira, vale narrar as peripécias de sua infância mineira, o tempo compartilhado entre o funcionalismo público e o vasto trabalho de traduções literárias e a trajetória do poeta consagrado na liberdade de seus versos, contos e crônicas.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
Mineiro de Itabira, nascido em 31 de outubro de 1902, Carlos Drummond de Andrade demonstrou desde cedo seu senso irônico e cético, sendo expulso do colégio por "insubordinação mental". A carreira de escritor teve início no jornal Diário de Minas, local em que viu nascer o movimento modernista mineiro. Mais tarde, os jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil também contariam com a pena de Drummond.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifíciosprovam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Formado em Farmácia, devido à pressão familiar por um diploma, sua dedicação espontânea era reservada para A Revista, veículo que visava afirmar o modernismo em território mineiro. Em 1934, a carreira no serviço público levou-o a respirar ares cariocas, ingressando no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde aposentou em 1962.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Enquanto suas obras, em versiprosa, ganhavam o mundo sendo traduzidas para idiomas vários como inglês, espanhol, italiano, alemão, francês, etc., Drummond realizava aqui, em terras tupiniquins, o belo trabalho de trazer para o português obras de Balzac, Proust, Molière, García Lorca, entre outros.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
A vida lhe soprou pela última vez em 17 de agosto de 1987, mas fiel aos seus próprios ensinamentos, Drummond tratou de entender que a vida é uma ordem e, assim, para honrar os versos de outrora, eternizou-se na literatura de nosso país, sendo hoje merecedor de nossos louros e glórias.
A melodia do poeta, conhecida na livre métrica de seus versos, pode ser apreciada também no tom mineiro da leitura que o próprio Drummond faz dos poemas "E agora, José?" e "No meio do caminho".

Fonte:  http://www.migalhas.com.br/